BRENDA PANTOJA
Da Redação
Persistir nos treinos até aprender um golpe novo, ter compromisso e responsabilidade nas tarefas da escola, manter uma postura respeitosa com professores e familiares. Estes são os ensinamentos fundamentais que a prática de artes marciais traz para as crianças e adolescentes que são atendidos por projetos sociais em bairros periféricos na Região Metropolitana de Belém (RMB). As orientações repassadas pelos mestres não servem apenas para o aprendizado do jiu-jitsu, do kung fu e do karatê, entre outras modalidades. Os princípios ultrapassam o tatame e são levados para a vida, oferecendo uma nova perspectiva para os participantes.
“Mais do que formar atletas e campeões, queremos formar bons filhos, bons alunos e excelentes cidadãos. O nosso Estado e o nosso país precisam disso, de meninos e meninas que tenham perspectiva e que apostem no futuro”, acredita o lutador de jiu-jitsu Eduardo Kahwage, que coordena o projeto social “Mente parada, oficina é no tatame”, da academia Kahwage Fight Team. No dia 1º de abril, a iniciativa completará sete anos de realização e tem 250 alunos praticando o esporte gratuitamente, na faixa etária entre 7 e 18 anos.
Os treinos são realizados em dois polos, que recebem meninos e meninas dos bairros do Jurunas, Cremação, Cidade Velha, Condor e Guamá. Na academia localizada na rua dos Tamoios, eles são diários e os integrantes chegam cedo – a pontualidade é um valor importante na prática das artes marciais. O espaço fica lotado e, antes do professor iniciar a aula, alguns alunos menores se empolgam com a brincadeira no tatame. Basta uma chamada de atenção para todos entrarem em formação e assim permanecem até segunda ordem. A disciplina é outro princípio essencial, que acaba sendo absorvido pelas crianças e exercitado também em casa.
Segundo Eduardo, a sede do projeto funciona de maneira filantrópica em 70% do expediente. No restante do período, os professores (que foram formados pelo projeto) atendem os alunos pagantes. A filial fica no conjunto Radional II, no bairro do Jurunas. “Sempre acreditei no esporte como instrumento de inclusão social, justamente por promover valores de hierarquia, dedicação e respeito. Começamos com 10 crianças e em um ano, já estávamos com 100 inscritos. Foi quando decidimos montar uma estrutura própria. O principal critério para eles se matricularem é que estejam frequentando a escola e com boas notas”, afirma.
O índice zero de evasão escolar é uma grande satisfação para ele, que também comemora a evolução deles na vida escolar e as vitórias em importantes campeonatos. “Temos reuniões periódicas com os pais e se o filho estiver indo mal no colégio, a gente afasta um pouco do projeto para ele se dedicar aos estudos. No ano passado, tivemos 15 participantes aprovados no vestibular e em 2014, uma das nossas alunas foi o primeiro lugar no curso de Educação Física da UEPA”, diz.
DISCIPLINA
Higor Lima, 17, é um dos alunos que já coleciona títulos em vários campeonatos. Ele, que está no projeto desde os 11 anos e é faixa roxa, conta que o jiu-jitsu o “mudou completamente”.
Além de ter foco nos treinos e na escola, o esporte deu a ele mais qualidade de vida. “Me sinto feliz praticando essa modalidade, treino todos os dias e isso me faz muito bem. Dentro do projeto a gente cultiva muitas amizades, tem instrutores que me ajudam com a preparação para as disputas, a manter uma alimentação regrada e amigos que
me ajudam com os estudos para o vestibular”, diz o rapaz, que ainda não decidiu se vai cursar Educação Física ou Engenharia Civil. Higor já subiu ao pódio como campeão e vice-campeão nos campeonatos pan-americano, sul-americano e brasileiro. Agora, ele se prepara para competir no Campeonato Brasileiro de Jiu-Jitsu Esportivo, que ocorrerá em Belém no mês que vem.
Ele é um dos muitos alunos campeões do projeto, que coleciona medalhas e troféus na parede da academia como forma de inspirar os meninos e meninas. Laysa Paes, 12, sonha com uma carreira esportiva e se espelha na vitória dos colegas do projeto, mas também se espelha na lutadora norteamericana Ronda Rousey, do UFC. “Quero estudar e treinar muito para chegar ao UFC. Algumas pessoas tem preconceito com o jiu-jitsu, acham que é uma arte marcial não muito valorizada, e ainda criticam mais se for uma menina lutando”, observa ela, que vem de uma família de caratecas e praticou judô dos sete aos nove anos, quando ingressou no “Mente parada, oficina é no tatame”.
Mesmo sendo bem nova, Laysa afirma com segurança que o projeto mudou a sua cabeça, pela responsabilidade que é cobrada dela no treino e no boletim escolar. “Tem gente no bairro que não quis participar do projeto porque preferia beber, fumar e se envolver com coisas erradas. Aqui a gente se mantém longe disso e se abrem outras portas”, completa a menina, que está ansiosa pela graduação para a faixa laranja.
O lutador e parceiro de Eduardo Kahwage na iniciativa, Almir Lafayette, reforça que acontece uma mudança concreta no comportamento dos adolescentes. “Quando eles aprendem a filosofia do jiu-jitsu, não se envolvem mais em confusão, entre outros benefícios. Estamos com planos de ampliar as vagas, abrindo mais bolsas”.
Apesar de ter um público com faixa etária específica, a demanda é tão grande que alguns pais decidem participar com os filhos ou então crianças menores de sete anos são aceitas. “A gente abre exceções quando vê que eles estão muito interessados e os pais se tornam nossos parceiros”, acrescenta o lutador.
Iniciativas sociais no Estado precisam de parcerias e investimentos
Foi aos 11 anos que Ricardo Henrique dos Santos, hoje com 18 anos, teve o primeiro contato com jiu-jitsu por meio do Programa Escola da Vida (PEV), realizado pelo Corpo de Bombeiros Militar (CBM) em Ananindeua. Quando alcançou a idade limite do projeto, saiu e continuou treinando na academia do bombeiro e professor de jiu-jitsu Marcos Coelho, que atua em parceria com o PEV. Atualmente, Ricardo é faixa roxa e instrutor de dezenas de alunos. Também conquistou mais de 15 títulos, incluindo disputas internacionais.
“O projeto atende meninos e meninas de bairros de periferia, então promover a cidadania através do esporte faz muita diferença para a realidade deles, pois a falta de foco e objetivo pode levar para um caminho errado. Converso muito sobre isso com os alunos”, complementa. Para o professor Marcos, 36, que acompanhou a trajetória de Ricardo, ele é uma prova viva do impacto que as artes marciais podem ter na vida de um adolescente. Ele explica que, em função da parceria com o CBM, criou o projeto “Jiu-Jitsu Arte Cidadã” e atende cerca de 300 crianças e adolescentes.
Além do trabalho no quartel, Marcos mantém a academia Bomba Top Team, para onde vão muitos dos participantes vindos do PEV. “A academia virou uma extensão do programa. No quartel a gente treina com os integrantes também karatê e capoeira, além do jiu-jitsu. Só lá temos 100 participantes. Desses, uns 40 já competem. A partir de seis anos eles podem disputar”, detalha. Ele ressalta o trabalho do Escola da Vida, que é completo e oferece uma série de atividades, mas apostar na continuidade da prática das lutas marciais e abrir as portas da academia gratuitamente para os jovens que vem do PEV é uma ferramenta de inclusão social, defende.
“Depois de um tempo, eles absorvem esse senso de responsabilidade, essa determinação e isso é muito bom para a formação deles como seres humanos. O que ainda é uma dificuldade nesse trabalho, que não deixa de ser independente, é conseguir patrocínio para arcar com os custos de passagens para eles competirem”, pontua.
Também no município de Ananindeua, o professor de artes marciais Pablo Silva Gonçalves, 33, investe no projeto “Sol Nascente”, que ensina kung fu para crianças de 5 até 14 anos. Em atividade desde 2012, a iniciativa alcançou mais de 200 pessoas e busca estimular o protagonismo juvenil.
De acordo com Pablo, é importante quebrar a visão de que as artes marciais são violentas, pois elas têm grande capacidade de transformação social. “A filosofia das artes marciais, em geral, é trazer autoconhecimento. A meditação e alongamento são formas de conhecer a si próprio primeiro, saber suas limitações e seu potencial os torna pessoas melhores e mais confiantes. Como qualquer esporte, melhora a coordenação motora e o condicionamento físico”, argumenta. As aulas sempre foram realizadas no bairro do Icuí-Guajará, em uma parceria com a escola La Salle, que cede o espaço, e a academia Chin Wu, dirigida por Pablo.
No momento, o projeto está em recesso e enfrenta dificuldades financeiras, mas se organiza para retornar em abril e expandir o atendimento para o bairro da Cidade Nova. Quando se fala de iniciativas independentes, o maior problema apontado por Pablo é a dificuldade de conseguir verba. As empresas investem pouco, ainda mais em um cenário de crise econômica, e a burocracia para obter recursos junto aos órgãos públicos é muito grande. “As crianças e adolescentes da periferia não em fácil acesso ao esporte gratuito, o lazer deveria ser um direito assegurado a eles. E quando tem, as modalidades não variam muito. É muito interessante que eles tenham contato com as artes marciais pelo impacto que a prática provoca na formação do caráter”, destaca.
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