quarta-feira, 8 de março de 2017

Música ao alcance de todos os públicos

*Publicado na página de Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 24/03/2016

BRENDA PANTOJA
Da Redação

Pelos corredores da sede da Associação Paraense das Pessoas com Deficiência (APPD), nas tardes de segunda a quinta-feira, é comum ouvir uma mistura de sons de flautas doces, teclados e ainda violões e cavaquinhos sendo afinados. São as turmas do projeto Música e Cidadania, promovido pela Fundação Carlos Gomes (FCG). A APPD é um dos cinco polos de aulas e o objetivo é oferecer classes de música a crianças, jovens, adultos e idosos com deficiência e para a comunidade em geral.
A iniciativa existe há 16 anos e tem como proposta a descentralização do ensino da Fundação Carlos Gomes, promovendo a acessibilidade educacional e musical das pessoas de baixa renda. Desde a criação do projeto, em torno de 15 mil pessoas já foram atendidas, em uma faixa etária que vai dos 7 ao 80 anos. Através das aulas, participantes com deficiências visuais, auditivas, intelectuais ou físicas mostram que qualquer limitação pode ser superada e não só aprendem a tocar instrumentos, mas também ganham em formação cultural, autoestima, segurança e oportunidades.
O ex-vigilante Arcelino Almeida da Conceição, 58, é um dos 163 alunos matriculados no polo da APPD e está na turma de violão desde o início da parceria, há oito anos. Por causa de um deslocamento da retina, ele só tem 15% da visão em um dos olhos e isso não foi impedimento para ir atrás do sonho de ser um violonista. “Tinha vontade de aprender desde adolescente e quando  cheguei no projeto, já com 49 anos, não tinha noção nenhuma. Hoje em dia, tenho bastante conhecimento e habilidade com o violão”, conta ele, que dedica horas ao instrumento musical em casa e até está ensinando um sobrinho.
Duas vezes por semana, ele viaja uma hora de Ananindeua para o prédio da APPD, no bairro de São Brás, para participar das aulas. Esse interesse se consolidou porque a musicalização o ajudou a enfrentar problemas como depressão, ansiedade e timidez. “Quando fui perdendo a visão, fiquei um tempo deprimido, tinha medo de sair de casa. Começar as aulas de violão foi ótimo para mim. A música tem a capacidade de transformar uma pessoa. Fiquei mais otimista, comunicativo e passei a socializar mais com parentes e amigos”, afirma.
Os ritmos paraenses e a música popular brasileira são os estilos que Arcelino mais gosta de tocar. Em festas e reuniões de família, ele é convidado a tocar algumas músicas, mas é nos palcos que a emoção bate forte. Por meio do projeto, o ex-vigilante e outros integrantes se apresentaram nos teatros Estação Gasômetro, Margarida Schivasappa e no Theatro da Paz, este último durante o Festival Internacional de Música de 2013. Ele anseia pela chance de repetir a experiência. “Foi um sonho realizado, sempre dizia aos meus amigos que um dia ia pisar naquele palco. Não tem dinheiro que pague a sensação de ser ovacionado pelo público. Estou aprendendo e evoluindo a cada dia. Quero, quem sabe um dia, ser pelo menos um bom violonista”, diz, com modéstia.

BEM ESTAR
As turmas da APPD reúnem tanto alunos com deficiência quanto amantes da música que desejam tocar algum instrumento. Aos 68 anos, Creuza Melo é da mesma turma que Arcelino Almeida e também frequenta as aulas desde 2008, pois já se tornaram uma terapia. Com problemas de locomoção nas pernas, ela sofre com artrite e reumatismo, mas aperfeiçoar a técnica com o violão contribui para o seu bem estar. Se dedicar à música era um sonho desde a infância, quando via os avós tocando flauta. “O violão me acalma. Amo música, me dá prazer e me rejuvenesce. Também sou de um grupo de dança folclórica, onde toco maraca. Tem dias que as dores são muito fortes, mas sempre que melhoro um pouco, me visto e vou à luta. Faço questão de participar do projeto porque me faz muito bem”, relata.
As portas do “Música e Cidadania” são abertas também para moradores da comunidade, como é o caso de Aldilene Fernandes, 31, que mora no bairro da Marambaia. Com um conhecimento básico de violão, ela queria aprofundar e está no projeto desde agosto do ano passado. A meta é tocar profissionalmente em uma banda. “Quero melhorar no violão porque em casa temos o projeto de formar um grupo de música religiosa. Já escolhemos o nome, vai se chamar Sementes do Amor. Minha irmã toca teclado, meu irmão fica na percussão, os dois cantam, e o meu pai coordena tudo”, revela.
Poder aprender a tocar um instrumento de graça, com apoio da Fundação Carlos Gomes, foi algo que ela não quis deixar passar. “Está sendo excelente para mim e estou me esforçando, praticando em casa e logo vamos concretizar o sonho de ter uma banda”, completa. As aulas têm um significado especial também para a estudante Ingrid Souza da Silva, 16, pois é o que ela se vê fazendo no futuro. “Pretendo estudar música na universidade e dar aula de violão, quero ser professora. Inclusive, acho que deveria ser uma área mais trabalhada nos currículos escolares”, pontua.
Ela chegou ao polo da APPD há um ano, depois de ter feito aulas particulares de violão e ter participado de um projeto de musicalização na escola, mas que foi interrompido. “A música me ajuda muito, até passei a tirar notas melhores, porque eu treino muito e isso colabora para a concentração e disciplina”, conclui.

Deficiência não limita capacidade de aprendizagem musical dos alunos

A professora de Música Elaine Valente destaca a relevância do “Música e Cidadania” para a inclusão social. Segundo ela, muitos acreditam que as pessoas com deficiência não têm a capacidade de aprender a tocar instrumentos, o que se mostra um erro. “A prática traz uma série de benefícios a esse público, começando pelo enriquecimento cultural e ampliação da visão de mundo. Em muitos lugares, esse trabalho é feito de forma segregada, em que eles são colocados em espaços separados. Aqui, a gente aposta na homogeneidade e tem funcionado muito bem”, salienta.
Eugênia Lobato, professora de canto do projeto, percebe que a evolução dos alunos se reflete na postura deles. “A pessoa chega aqui pensando que não sabe cantar e, na primeira aula, se surpreende, se encanta. A disciplina dos exercícios os deixa mais seguros na afinação, na entonação. E o interesse pela música só aumenta, temos alunos que passam por várias turmas. Começam no violão, fazem canto, depois flauta e assim vai”, complementa. Josiane Pantoja, 26, cursou violão na APPD, onde é associada, por três anos e agora entrou para a turma de canto.
Ela foi diagnosticada com esquizofrenia, de acordo com a mãe, Lourdes Rodrigues, e a música tem sido uma ferramenta muito útil no tratamento da filha. “Ela também faz dança de salão em outro lugar. A música melhora o ânimo dela, ocupa a mente. Acredito que o canto vai ser muito bom por ser algo que vem de dentro para fora, ajuda a lidar com emoções”, pondera.
Josiel Cardoso, 24, também está estudando canto e é um dos alunos que leva as aulas a sério, movido pela paixão que tem pela música. Com deficiência motora no braço esquerdo, ele gostou de saber que tinha acesso a um projeto como este.
“Tive aulas particulares de canto por três anos, é algo que eu amo. Quando soube das aulas gratuitas, fiquei feliz e vou continuar praticando porque penso em seguir carreira na música. A pessoa com alguma deficiência muitas vezes se sente desigual e quando essa iniciativa nos dá a chance de fazer uma atividade tão boa, com ótimos professores e sem nenhuma separação nas turmas, você esquece essas diferenças. Você se sente totalmente parte do grupo e isso é muito legal”, analisa.

ACESSIBILIDADE
A musicalização acessível foi uma causa abraçada pela Associação Paraense das Pessoas com Deficiência, assegura o diretor técnico e científico da entidade, Ronaldo Castro de Oliveira. Ele diz que o serviço funciona como mais do que uma terapia para os associados, pois mostra novos caminhos, impactando as relações interpessoais e até a vida profissional de alguns participantes. “Temos casos de alunos com deficiência que deixaram o projeto e passaram a cantar e tocar profissionalmente. Para quem está no projeto ou quer entrar, eu digo que o limite é de acordo com a sua força de vontade”, comenta.
A lista de espera para o próximo semestre chega a 40 pessoas e a demanda é grande justamente pela dificuldade de turmas que garantam acessibilidade no ensino. “Os associados têm prioridade, mesmo com as vagas abertas para a comunidade, porque a falta de espaços que matriculem alunos com deficiência para musicalização é uma queixa recorrente. Nós temos turmas que se mantém com apenas dois alunos, se preciso for, porque acreditamos que é uma ação importante para eles. A sociedade como um todo deveria se comprometer mais com a acessibilidade”, cobra.
Ronaldo fala com orgulho e alegria do andamento do projeto, especialmente dos momentos de apresentação ao público. “Ali no palco, eles são o espetáculo e é muito legal ver a satisfação deles, o senso de realização. A música é um instrumento de mudança não só das pessoas com deficiência, mas das crianças e jovens em geral”, reitera.

INICIATIVA
Reginaldo Viana coordena o “Música e Cidadania” e aponta um desdobramento interessante da iniciativa, que é a oportunidade de ingressar no Instituto Carlos Gomes após dois anos de aula em qualquer um dos polos. Ele explica, ainda, que o projeto surgiu para suprir a necessidade de democratização da educação musical na Região Metropolitana de Belém. Temos uma demanda muito grande, que a instituição não consegue suportar pela própria estrutura física. “Pensando em atender esse público que não passou nos exames habilitatórios ou não tem acesso ao ensino musical e que estão em áreas de vulnerabilidade social, criamos esse curso, que é livre”, detalha.
Para começar o ensino técnico, é possível fazer um teste específico, aplicado especialmente aos atendidos pelo projeto e eles concorrem entre eles pelas vagas. “Hoje, 60% dos alunos do Instituto são oriundos dessa ação social. Temos ex-alunos que já são professores e tem mestrado. Acredito que a música é para todos, não só para alguns. O projeto os aproxima da música e da arte, amplia os horizontes, a formação cultural, a visão dele mesmo como alguém envolvido em uma produção artística”.  Reginaldo informa que pessoas com deficiência são aceitas em todos os polos, mas que a APPD é referência e tem profissionais que desenvolveram métodos específicos para esse público. Ainda segundo ele, as matrículas devem ser feitas diretamente em um dos polos e novas turmas serão abertas no segundo semestre.

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