*Publicado na página de Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 04/02/2016
BRENDA PANTOJA
Da Redação
Combater o trabalho em condições análogas à escravidão ainda é um dos grandes desafios do Brasil. Especialmente no Pará, que ano após ano figura entre os estados com maior registro de casos. Somente no ano passado, 28 estabelecimentos foram inspecionados e 36 trabalhadores foram encontrados em condições de escravidão. Em 2014, os números foram maiores, com 121 pessoas flagradas em condições análogas à de escravo. No entanto, a redução na quantidade de ocorrências é vista com muita cautela pelas entidades envolvidas no enfrentamento da prática, pois refletem muito mais as dificuldades de fiscalização do que a erradicação dessa realidade. Os dados são do último balanço divulgado pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS).
O presidente da Comissão de Combate ao Trabalho Forçado da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Pará (OAB/ PA), Giussepp Mendes, afirma que é importante entender a dinâmica da escravidão moderna, incluindo suas repercussões sociais. “Boa parte da sociedade ainda tem aquela visão estereotipada de um trabalhador mais velho, analfabeto, acorrentado, sujo, na carvoaria ou em outras atividades da zona rural. Apesar de ser uma área que ainda concentra muitos casos, o trabalho em condições degradantes tem migrado para a zona urbana”, comenta.
De fato, 61% dos casos de vítimas de trabalho escravo no Brasil foram identificados em espaços urbanos, principalmente nos setores de construção civil e produção têxtil. Ainda que as vítimas, no geral, sejam pessoas de baixa escolaridade, ele chama a atenção para o aumento de imigrantes e refugiados. “Esse fenômeno já está sendo observado em alguns estados, mas no Pará ainda não temos um estudo do número de trabalhadores nesse perfil”, complementa. Mendes ressalta que o cerceamento da liberdade pode se dar por razões financeiras, morais ou físicas. “Quando um trabalhador vem de outro estado, já chega devendo para o patrão e não tem como retornar. A contenção física é o tipo de situação que menos se vê. Muitas vezes, o homem que passa por isso desconta em casa”, pontua.
Segundo ele, é comum encontrar nas famílias desses trabalhadores casos em que os filhos são obrigados a sair da escola e ir trabalhar ou pedir esmola na rua para complementar a renda. O consumo de drogas e álcool também é um fator frequente, assim como a violência doméstica. “Quem se submete a isso, o faz por uma necessidade alimentar, de sobrevivência. Se não houver orientação e assistência para a reintegração dele ao mercado de trabalho, pode voltar para o mesmo cenário”, acrescenta. Nos últimos dois anos, a ação dos fiscais do MTPS no Pará promoveu a formalização de
251 contratos de trabalhadores que não tinham carteira assinada.
Mendes acredita que a sociedade civil e o poder público precisam exercer um olhar mais amplo em relação às jornadas extenuantes e condições degradantes de trabalho, que afetam um grande universo de empregados mesmo na Região Metropolitana de Belém. “Os dados recentes não traduzem muito bem a realidade do Estado. Não se tem informações reais do alcance dessa nefasta forma de trabalho. Ainda é preciso avançar muito e montar um grande colegiado para realizar um combate mais efetivo”, avalia.
“Escravo, nem pensar!” aposta na conscientização para combater a prática
Além da repressão através das operações de fiscalização e flagrante, há uma ação relevante a ser feita na outra ponta: conscientizar. Por meio do programa “Escravo, nem pensar!”, realizado pela organização não-governamental (ONG) Repórter Brasil, mais de 35 mil estudantes foram alcançados em 11 municípios do sul e sudeste paraense, localidades escolhidas justamente pelo alto índice de trabalho escravo. A entidade, com sede em São Paulo, promove iniciativas sociais e ambientais em todo o Brasil e desenvolveu o combate à prática durante um ciclo de atividades pedagógicas entre 2014 e 2015. Natalia Suzuki, coordenadora do projeto, explica que o objetivo é disseminar a informação em regiões de maior vulnerabilidade socioeconômica.
Com a implantação do programa, 1,3 mil educadores e gestores passaram por formações sobre o tema e elaboraram atividades pedagógicas que foram aplicadas em 181 escolas, abrangendo desde o ensino infantil até o ensino técnico e Educação para Jovens e Adultos (EJA). “Os professores e coordenadores entendem que esse é um problema muito próximo e evidente na região. Tem impacto direto dentro do ambiente escolar, pois alunos mais velhos podem ser aliciados ou têm familiares e amigos nessa situação”, alerta. Além disso, a metodologia enfatiza o aprendizado crítico sobre direitos humanos, como uma forma de evitar que futuramente eles se submetam a situações de exploração.
Prova de que o tópico precisa entrar nas salas de aula é que os municípios de Jacundá e Nova Ipixuna incluíram o assunto no Plano Municipal de Educação (PME), garantindo que ele será abordado nos próximos 10 anos. Os alunos produziram textos, poesias, desenhos, dramatizações, maquetes, pintura de muros, feiras culturais, seminários, debates e mesas-redondas, mobilizando a comunidade escolar, os pais, entidades da sociedade civil e agentes de outras instituições públicas. De acordo com Natália, o primeiro ciclo do programa chegou ao Pará em 2006 e, nos sete anos que se seguiram, 22 mil alunos foram beneficiados.
“Foi quando decidimos mudar a nossa metodologia e investimos na formação continuada de professores e gestores da rede pública. A resposta foi muito positiva. Em dois anos conseguimos atingir mais do que o dobro do que nos ciclos anteriores”, comemora. As atividades foram encerradas oficialmente no final do ano letivo de 2015, mas a ONG está em fase de estudos e captação de parcerias para definir em que cidades serão feitas as formações do próximo ciclo. “Nossa expectativa
é ampliar, inclusive para a Região Metropolitana de Belém e áreas insulares, onde sabemos que o tráfico de pessoas para exploração sexual é uma questão grave. Também damos ênfase a esse problema no projeto”, assegura.
Natália defende que a informação é uma arma fundamental para que o público esteja menos vulnerável. “Eles precisam conhecer os riscos de uma proposta de emprego enganosa e saber identificar os aliciadores. Se forem convidadosa sair da cidade, aceitar apenas se souber o nome exato do lugar para onde está indo, deixar contatos com a família e assegurar a assinatura de um contrato ou da carteira”, orienta. Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e Comissão Pastoral da Terra são alguns dos parceiros do projeto e os 11 municípios envolvidos foram Canaã dos Carajás, Curionópolis, Itupiranga, Jacundá, Marabá, Nova Ipixuna, Palestina do Pará, Parauapebas, Piçarra, São Geraldo do Araguaia e Tucumã.
A professora Luciete Moreira é coordenadora pedagógica da secretaria municipal de educação de Jacundá conta que, com as atividades do “Escravo, nem pensar”, eles passaram a receber denúncias de alunos. “Trabalhando sobre o tema, pudemos detectar estudantes que já tinham passado por trabalhos análogos à escravidão e outros que tinham conhecimentos de casos semelhantes. Afinal, eles veem muito essas situações aqui no local. Ainda acontece principalmente no campo”, relata. No município, o programa começou a ser realizado em seis escolas, mas hoje já está em 23 unidades de ensino urbanas e duas rurais.
Números menores não significam que atividade foi reduzida no Pará
O enfrentamento esbarra, ainda, na falta de estruturação dos órgãos responsáveis. A constatação é do auditor fiscal Raimundo Barbosa da Silva, coordenador de Fiscalização Rural e Combate ao Trabalho
Escravo no Estado, da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego (SRTE Pará). No Estado, a categoria deflagrou greve há 10 dias e muito da insatisfação dos profissionais está ligada aos obstáculos para atuarem de forma mais eficaz. “É necessário olhar com cuidado os relatórios divulgados. Os números menores não significam que a prática reduziu no Pará, mas sim que estamos
com equipes reduzidas para fiscalizar”, argumenta.
Ele aponta que, em 20 anos, a quantidade de auditores fiscais no Estado caiu de 170 para 60. No Brasil, a queda foi de 3.600 para 2.400, com possibilidade de 400 aposentadorias até o fim deste ano. “Ano passado, tínhamos doze operações conjuntas de combate programadas, mas só conseguimos realizar uma, por dificuldades de articulação e de condições de trabalho. Em anos anteriores, chegávamos a 20, 30 operações. Para atuar em um território tão extenso, é preciso ter mais estrutura”, frisa.
O monitoramento de rotina é uma ferramenta eficaz para coibir a prática, mas falta pessoal. “Precisamos urgentemente de um concurso para auditor fiscal, no máximo dentro de 2 anos. Outro passo inicial é o fortalecimento de estruturas do SRTE. Temos problemas sérios com os prédios-sede em Belém, Santarém e Marabá, que foram interditados pela precariedade. Faltam coisas simples como material de expediente, tem linhas telefônicas com defeito há dois anos, o que dificulta a realização de denúncias” , critica.
O juiz Pedro Tupinambá, titular da 3ª Vara do Trabalho de Marabá e presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 8ª Região (Amatra8), também salientou a preocupação da classe com o corte de 30% no custeio e de 90% de investimento na Justiça do Trabalho. “Chegamos a realizar varas itinerantes para ir até locais mais distantes, facilitando o acesso do trabalhador ao judiciário. Mas essas reduções na verba provavelmente vão impedir a instalação de uma vara trabalhista em São Félix do Xingu, uma grande área de conflito, e vai dificultar a atuação das varas itinerantes. Os órgãos de fiscalização precisam estar aparelhados para ampliar e melhorar a fiscalização”, diz.
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