quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Cenário de obstáculos às doenças raras

*Publicado na página de Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 11/02/2016

ERRATA: A primeira foto (à esquerda) não corresponde a nenhum dos personagens citados na matéria


BRENDA PANTOJA
Da Redação

                                           Consultar vários médicos especialistas, peregrinando por hospitais dentro e fora do Estado, ter dificuldade em conseguir um diagnóstico preciso e saber exatamente que problema está sendo enfrentado, além de arcar com os custos de tratamentos e remédios caríssimos. Estes são os maiores obstáculos dos pacientes com doenças genéticas raras e suas famílias. O Ministério da Saúde estima que haja cerca de 13 milhões de brasileiros afetados por enfermidades raras, que atingem até 65 pessoas em cada grupo de 100 mil indivíduos. 
No Pará, a implantação da portaria 199/2014 é muito aguardada por essa parcela da população. Trata-se da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, aprovada há dois anos, que garante atendimento no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e prevê incentivos. Enquanto a medida demora para sair do papel na maioria do país, as famílias buscam se unir em associações e grupos independentes para compartilhar informações sobre as doenças, os profissionais especializados, espaços de referência e até para articular meios de pagar viagens, quando necessário.
A mobilização ganha visibilidade neste mês, uma vez que o dia 29 de fevereiro foi escolhido para simbolizar o Dia Mundial das Doenças Raras. Como só acontece em anos bissextos, a data é celebrada no dia 28 nos demais anos. Para divulgar o tema, serão realizadas palestras, caminhadas e a inauguração do centro de apoio da Associação Paraense de Síndrome de Williams e Outras Doenças Raras (APSW & ODR). A entidade existe há dois anos e atende quase 60 famílias, recebendo também casos de mucopolissacaridose, distrofia muscular de Duchenne, picnodisostose, microcefalia e outras síndromes como a de Crouzon e de Guillain-Barré.
“O que tentamos fazer é abrir um caminho que não nos mostraram quando precisamos, tivemos que achar sozinhas e agora podemos ser uma ponte para outras pessoas que enfrentam essa luta”, define Amauriléia Gonçalves, 40, que atua como secretária na associação. Ela é mãe da Lisandra Gonçalves, 16, que é portadora da síndrome de Williams e esperou 13 anos para saber o diagnóstico. Amauriléia explica que desde bebê, a filha demonstrou problemas no desenvolvimento, custando a andar e falar e teve problemas cardíacos. “Consultamos muitos médicos, mas nenhum sabia o que era e nem como investigar. Até que cheguei ao hospital Bettina Ferro. Na época, o exame custava cinco mil reais. Conseguimos fazer através de um projeto da UFPA e a Lisandra foi a pioneira na realização desse teste no Pará”, conta.
Uma reclamação constante dos pacientes e familiares é a desinformação entre os médicos e demais profissionais da área da saúde. “A maioria nunca nem ouviu falar de algumas doenças raras, poucos locais fazem os exames necessários, muitas vezes tem que ir pra fora do estado. Sendo que o diagnóstico precoce é fundamental quando se trata desse assunto”, afirma. Os portadores da síndrome de Williams podem ter, ainda, complicações motoras e renais e déficit cognitivo, com deficiência mental leve a moderada, assim como também são muito amigáveis e alegres. Lisandra nunca precisou fazer cirurgias e atualmente tem o acompanhamento de 12 profissionais diferentes por meio do Serviço de Desenvolvimento e Crescimento – Caminhar, do Hospital Bettina Ferro, e do Hospital de Clínicas Gaspar Vianna.
A professora Naíde do Carmo, 47, precisou passar por cima de muita coisa para descobrir e saber como tratar que doença acometia as filhas Laís e Flávia, hoje com 22 e 20 anos de idade, respectivamente. Moradoras do município de Cametá, as filhas nasceram normais, mas apresentaram sintomas da mucopolissacaridose tipo 6 (MPS 6) por volta do primeiro aninho de vida. “Quando a Laís estava com um ano e meio, comecei a ir em vários médicos. As dificuldades de transporte e hospedagem eram grandes e só quatro anos depois foi que recebemos uma resposta”, lembra. 
Quando a doença das meninas foi identificada, elas foram selecionadas em um estudo para a criação de um remédio. A família passou cinco anos em Porto Alegre, participando da pesquisa, e elas responderam muito bem ao tratamento e ganharam o direito a receberem, por tempo indeterminado, o medicamento. Se eles tivessem que pagar pelo produto, o gasto seria de mais de R$ 16 mil por ano. “O remédio é distribuído pelo governo para nós e tem vezes que ameaça atrasar, mas aí eu ligo direto para o laboratório e eles resolvem”, diz.
Naíde e as filhas precisam viajar de Cametá para a capital uma vez por semana, para a reposição enzimática no Bettina Ferro. O trajeto é feito de ônibus, mas para evitar problema na coluna delas, chegam a passar semanas em Belém, na casa de familiares. “Quando tudo começou, não tínhamos informação, assistência, nada... Ainda falta muito apoio do governo, mas o conhecimento está melhorando e, principalmente, a articulação da sociedade, que precisa se fortalecer na briga pelos direitos e qualidade de vida desses pacientes”, comenta. A MPS tipo 6 se caracteriza pela baixa estatura, aumento do baço e limitação das articulações, mas não causa nenhum retardo mental, tanto que Laís e Flávia estão concluindo o ensino médio.

APSW & ODR
A trajetória da APSW & ODR começou com a funcionária pública Lígia Lopes, 33, presidente da entidade e mãe do Davi Neto, 9, também portador da síndrome de Williams. Segundo ela, na maternidade já foi possível perceber algumas características sindrômicas, mas o susto veio quando ele precisou operar de hérnia inguinal ainda aos três meses e depois foi internado por um problema no coração, passando alguns dias na UTI. Toda a investigação clínica só teve uma resposta quando o garoto tinha quase três anos. Lígia recorda, emocionada, que até os cinco anos, o filho teve três paradas cardiorrespiratórias, fez três cirurgias de hérnia e contraiu pneumonia oito vezes, entre outras complicações. 
“Infelizmente, tudo foi muito difícil. A saúde do Estado não tinha conhecimento e nem o suporte necessário para cuidar do meu filho. Tivemos que ir a São Paulo atrás de diagnóstico e de alguns tratamentos. O que a associação quer é fazer funcionar o que já existe, encaminhando as pessoas para profissionais de referência. Temos apenas quatro geneticistas no Estado”, pontua.
Ela realizou o primeiro encontro regional de síndrome de Williams, em 2014, o que ajudou bastante a identificar os 25 casos que a entidade acompanha no Estado. Ao encontrar uma pessoa com suspeita de doença rara, Lígia conta que eles procuram ir até o local para ajudar na busca pelo diagnóstico, em um trabalho de mapeamento.
Para ela, é mais interessante ter uma instituição que represente as doenças raras do que ter várias associações com pouca visibilidade, pois são poucos casos.
A dona de casa Francidalva Barros, 37, confirmou o diagnóstico da síndrome de Williams do filho Cauã, 6, somente no ano passado. A resposta veio por meio da assistência prestada pela Santa Casa e a UFPA. “Antes de conhecer a associação, eu tinha muita dificuldade para arranjar consulta com alguns especialistas. Ele faz acompanhamento com nefrologista, terapeuta ocupacional... para conseguir uma cardiologista pediátrica tive que esperar quase um ano. Os custos são altos, pois ele precisa de remédios para o coração e pressão arterial e não temos nenhum auxílio”, relata. Cauã aguarda há três anos para fazer uma cirurgia cardíaca no Hospital de Clínicas.

Elogios e críticas se cruzam nos tratamentos

Muitas mães que realizam  acompanhamento pelo Bettina Ferro ou pela Santa Casa, entre outros locais de referência, elogiaram as equipes multiprofissionais que acompanham os filhos, mas também criticaram a dificuldade de acesso. A burocracia e a lentidão do sistema público foi o que levou Gil Moreira, 42, e Márcia Lopes, 45, a correrem atrás de atendimento privado para a filha Rebeca Lopes, 16, que tem atrofia muscular espinhal tipo 3 (AME 3). Com o diagnóstico em mãos, por volta dos dois anos de idade, deram início ao tratamento em um projeto da Universidade Estadual do Pará (UEPA), e em uma clínica particular.
No entanto, Rebeca parou de andar aos quatro anos, em função de uma fisioterapia realizada erradamente pela clínica. “Eles não tinham conhecimento sobre a doença e apesar do laudo especificar as atividades, fizeram de forma errada e ela perdeu a marcha”, lembra Márcia. Por dificuldades financeiras e de locomoção, a família teve que interromper o tratamento quando ela completou seis anos. Somente em 2013, através de uma amiga da família, a analista de sistemas Nazaré Cardoso, 49, que conhece outros casos de AME 3, eles conseguiram arrecadar R$ 15 mil para ir a São Paulo realizar a cirurgia que corrigiu a escoliose dela, dando mais qualidade de vida. “As poucas clínicas de fisioterapia que sabem tratar o caso da Rebeca são muito caras e nós não temos carro para levar, nem conseguimos pagar todo dia o transporte especial”, lamenta.
A família chegou a realizar outras viagens para São Paulo e Fortaleza, para consultas de avaliação com médicos especialistas na doença, sempre com apoio de uma rede de amigos que contribui para os gastos. “O nosso plano agora é comprar um carro adaptado e uma nova cadeira, pois a dela está pequena. A cadeira com as adaptações necessárias custa mais de R$ 17 mil. Ela também precisa usar uma máquina para ajudar na respiração, que custa R$ 10 mil. Ao todo, nossos gastos chegariam a quase R$ 150 mil”, contabiliza o pai.
Ele reforça que as longas filas de espera para tratamento pelo SUS são desanimadoras. “Fomos rejeitados várias vezes por não nos encaixarmos no perfil do SUS, um serviço que devia ser universal, mesmo sendo uma paciente que, no momento, não tem condições de arcar com o tratamento”, reclama.

Pará avança a passos curtos na área da genética


Em 15 anos de trabalho, o Laboratório de Erros Inatos do Metabolismo (LEIM) da UFPA atendeu quatro mil famílias e fechou o diagnóstico de cerca de 200 casos. O biomédico Luiz Carlos Santana chefia o LEIM, é presidente da Regional Norte e Nordeste da Sociedade Brasileira de Genética Médica e coordena um projeto de extensão que investiga doenças raras. “Além de identificar as enfermidades, fazemos o aconselhamento genético das famílias, ajudando-as a saber se têm chance de ter outros filhos com a mesma doença. O Pará está avançando na área, mas ainda é a passos curtos. Precisa ter mais agilidade por parte do governo para se organizar”, opina.
De acordo com ele, 60% da demanda que chega ao LEIM é de Belém e o restante se divide entre outros municípios paraenses e até do Maranhão. “Conseguimos expandir o nosso trabalho a duras penas. O diagnóstico é feito de forma totalmente filantrópica, com verba do CNPQ. Algumas coisas, como luvas, temos que tirar do próprio bolso”, frisa. O laboratório tem parceria com uma rede nacional, enviando exames para outras instituições caso ainda não seja possível realizar localmente.
“Estamos em um período difícil, com muitos cortes de verba. Usamos materiais muito caros e, sendo efetivada a portaria, o recurso que chegaria aos hospitais de referência e depois seriam repassados para nós, ajudaria bastante”, completa. A neuropediatra Helena Feio integra o time do Serviço Caminhar, no Bettina Ferro, e fala do longo caminho a ser percorrido na área. “Muitos médicos da rede básica não têm informação e não pedem os exames corretos. Ainda tem muitos testes que são enviados para fora do Estado, precisamos investir para melhorar esse cenário”, salienta. 
Em função do feriado de Carnaval, a equipe de reportagem não conseguiu encontrar um representante da Sespa para falar sobre a implantação da portaria 199/2014.

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