BRENDA PANTOJA
Da Redação
Cortando a Baía de Guajará e entrando pelos furos e igarapés, quem navega pela Ilha do Combu vai ver surgir as obras de arte de Sebá Tapajós, 30, por entre a mata que cerca as moradias dos ribeirinhos. O artista visual e grafiteiro resolveu aproveitar a comemoração dos 400 anos da capital paraense para prestigiar a população de uma outra Belém: a cidade insular que tem uma realidade bem distinta do continente. Nas fachadas das casas de madeira estão expostos os grafites feitos por ele e por outros artistas, formando a primeira galeria de arte fluvial do mundo. O projeto Street River foi montado para dar visibilidade às comunidades das ilhas por meio da arte e Sebá busca formas de dar continuidade e garantir um retorno social aos moradores.
Interessado pela arte e apaixonado pela região amazônica desde a infância em Santarém, Sebá viu na ideia de fazer uma galeria a céu aberto uma oportunidade de beneficiar quem vive no local. A primeira fase foi realizada em março de 2014, quando ele começou a dialogar com os habitantes e trabalhadores da área para pintar suas casas e barcos. Com tudo organizado de forma independente, as pinturas inspiradas no movimento dos rios e na floresta foram se espalhando, encravadas pela ilha. Nos dias 16 e 17 deste mês, ele pegou o barco junto com grafiteiros convidados de várias partes do país e atravessou a baía, com o objetivo de aumentar o “acervo” do furo Igarapé Combu, uma das quatro comunidades da Área de Proteção Ambiental da Ilha do Combu e que reúne cerca de 200 famílias que vivem do extrativismo vegetal e da pesca.
No fim de semana do evento idealizado pelo artista, sete novas casas foram coloridas, totalizando 12 residências grafitadas no Igarapé Combu. “Ao todo, tem umas 20 obras espalhadas pela ilha, fora os barcos. As pessoas estão sendo muito receptivas, uma característica do povo amazônico e o projeto está ganhando uma repercussão enorme. Essa é a hora de não só chamar a atenção para o grafite, mas para fortalecer a dignidade dos ribeirinhos”, afirma. Ele comenta que o Street River foi um investimento financeiro – tudo foi custeado pelo próprio Sebá, que aplicou em torno de R$ 30 mil na ideia - mas também de sentimento e de responsabilidade social.
“Fiquei muito incomodado ao ver que as programações do aniversário de Belém neste ano foram pensadas somente para os habitantes da cidade no continente e esqueceram, mais uma vez, os povos tradicionais. Aqui [no Combu], as dificuldades são grandes para conseguir educação, saúde e saneamento adequados”, critica. A inquietação do grafiteiro é antiga e o faz pensar na arte como uma ferramenta de inclusão social. Sebá morou em várias cidades brasileiras, passando pelo Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e alguns meses na Europa. Há cinco anos, decidiu se fixar em Belém e o bairro do Reduto, zona portuária da cidade, se tornou um de seus espaços de experimentação.
Em 2014, ele promoveu o Reduto Walls como uma forma de ressignificar os ares do bairro, com a parceria de artistas nacionais, contribuindo para que a capital despontasse no cenário mundial do street art. “O Reduto é um dos bairros com maior índice de assalto. A preocupação social faz parte da minha formação, dei aulas para menores infratores no Rio e em Belém e essa experiência me mostra que ocupar a cidade com arte pode gerar uma consciência social ou até atrair investimentos para uma revitalização”, exemplifica.
Das ruas de asfalto para os rios que são as nossas ruas, ele manteve essa mentalidade na elaboração do Street River, que levou os artistas renomados Fael Primeiro (BA), Kajaman (RJ), Mundano (SP), Toys e Omik (DF), o coletivo Acidum Project (CE) e Gaspar (PA). Eles também abriram, gratuitamente, para um público de quase 90 pessoas que foi junto para conhecer a galeria e ver os grafiteiros em ação. “O projeto repercutiu bastante por causa da vivência proporcionada. Belém possibilita essa experiência de pegar um barco, ser bem recebido pelas famílias da comunidade e pintar em contato com a natureza, agregando valor à arte e ao ambiente”, pontua.
Sebá é contundente ao dizer que não aceitou apoio do poder público para o Street River, pois percebeu, na conversa com os ribeirinhos, um descrédito em relação a iniciativas públicas. Em relação ao setor empresarial, ele acredita que a história pode ser diferente. “Conseguindo parcerias privadas, a verba seria usada para bancar os custos do projeto e tudo o que sobrasse seria aplicado em alguma necessidade da comunidade. Quando se fala em responsabilidade social, muitas empresas pensam logo em educação ou outras áreas, mas a arte é um poderoso instrumento de transformação e esse projeto se propõe a fazer algo concreto pelos moradores, visando melhorias que permaneçam na Ilha”, defende.
Grafiteiros elogiam a inusitada experiência que tem o rio como palco
Os artistas Tereza Dequinta e Robézio formam o coletivo de arte urbana Acidum Project, de Fortaleza, e ficaram responsáveis por pintar três lugares. A casa e o depósito de cacau da moradora mais antiga do furo, a dona Angélica Quaresma, e a sede da biblioteca comunitária que fica bem ao lado. O resultado foi uma linda explosão de cores para os moradores e visitantes, bem como uma experiência diferente de interação para a bagagem cultural dos grafiteiros, que destacaram o surgimento de novas atividades econômicas a partir do Street River.
“O projeto em si é inédito, por ter os rios como palco, mas não se trata de só vir pintar. Vejo como uma ação de inclusão social, pois movimentou a comunidade. Já tem barqueiros fazendo visitas guiadas pela galeria. Além do embelezamento, ele fortalece as conexões entre esses dois ambientes da cidade”, observa Tereza. Ao todo, ela e Robézio gastaram um dia em cada grafite, que é o tempo médio para a realização de uma obra no projeto, sempre abastecidos pelo saboroso café da dona Angélica, de 90 anos.
Figura conhecida no furo Igarapé Combu, até mesmo pelo tamanho da família Quaresma, ela conta que ficou até um pouco mais “famosa” depois que a propriedade recebeu “uma pintura tão linda”. De um tempo em que, ela jura, a mata da Ilha era habitada pelos personagens dos mitos amazônicos, dona Angélica nem pensa em trocar o Combu pela cidade. A construção de escola, de posto de saúde e a chegada da energia elétrica na região foram os principais avanços, mas ela está atenta para uma mudança na rotina que pode se intensificar com a realização do Street River.
“Aparece gente de todo o canto do mundo por aqui, eles vêm curiosos para conhecer como a gente vive e a arte que deixaram vai chamar mais atenção. Junto com projetos desse tipo, e com o aumento dos visitantes, precisava vir mais assistência do governo”, diz. Assim como ela, todos os moradores que participaram confiaram nos artistas e deram passe livre para a criação, sem dar palpites. Sebá, que inclusive é daltônico, costuma pintar somente obras abstratas, mas chamam a atenção os imensos retratos de personagens locais, inspirados nos índios e caboclos da Amazônia.
Um deles é o rosto da dona de casa Leonice de Souza, 75, nascida e criada na Ilha. De início, ela não gostou da ideia, mesmo com os filhos e netos tentando convencê-la. “Acabou que eles pegaram uma foto minha escondidos e deram pro artista. Quando eu vi, fiquei surpresa, mas não tinha como ficar chateada porque sou louca por eles e porque a pintura ficou muito bonita”, admite, em tom afetuoso. O grafite na casa dela é de autoria de Sebá e Gaspar. Para ela, o projeto prestigia as famílias locais e valoriza as casas. “Muita coisa melhorou por aqui. Antes a gente vivia totalmente isolado e o acesso a serviços era bem mais difícil. Só que ainda falta melhorar muita coisa e a gente espera ser mais lembrado pelos órgãos públicos”, acrescenta.
Ari Gomes, 48, trabalha com colheita de açaí durante a semana e como barqueiro aos finais de semana e feriados. Ele não é tão otimista como as vizinhas Angélica e Leonice e tem uma visão mais crítica da situação do Combu, onde mora há duas décadas. Em todo esse tempo, as melhorias chegam muito lentamente. “O pior problema para nós é a saúde. Temos um posto para nos atender, mas funciona só no turno da manhã e ainda fecha aos finais de semana”, reclama. Outras deficiências são o abastecimento de água, a coleta de lixo e a falta de saneamento.
Como muitos ribeirinhos, Ari precisa atravessar para a cidade para comprar água mineral ou esperar o vendedor que passa duas vezes por semana com os galões de água potável. É uma dificuldade muito grande implantar poços, sistema de captação da água da chuva, fossas sépticas. O incentivo do governo é praticamente zero e os poucos projetos sociais que aparecem não conseguem se manter por muito tempo”, completa. Familiarizado com as obras do Street River, que possuem placas informativas na frente de cada casa, e com os moradores da comunidade, Ari espera ver um crescimento na renda das famílias.
“Para conhecer as pinturas, a pessoa explora mais o Combu, descobre outros bares e restaurantes... As famílias aproveitam e trazem frutas ou outros produtos para vender na margem, e os barqueiros tem mais um atrativo para mostrar e levar os passageiros”, avalia. Sebá garante que o projeto está apenas no início e quer instigar o interesse de uma parcela cada vez maior da sociedade. A próxima meta dele é concretizar os planos de, ainda nesse ano, mobilizar artistas internacionais para tornar a galeria ainda mais rica e diversa, além de consolidar a Amazônia na rota do grafite mundial.
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