*Publicado em O LIBERAL de 23/03/2014
BRENDA PANTOJA
Da Redação
O portão de madeira da casa de Neuza Palheta Favacho dificilmente é encontrado fechado. No meio de um jardim bem conservado, fica um poço que é visitado por boa parte da vizinhança que não dispõe de água encanada na rua Tiradentes, conjunto do Paracuri II, em Icoaraci. Ela é dona de um dos quase 40 mil poços particulares encontrados na Região Metropolitana de Belém (RMB) por pesquisadores da Universidade Federal do Pará. Deste número, eles estimam que a média de contaminação chegue a 80%, mostrando que entre 600 mil a 700 mil habitantes da área consomem água de baixa qualidade.
Dona Neuza não revela a idade, dizendo apenas que “são mais de 80 anos”, mas contou que mora na mesma rua há onze anos e o poço já estava lá quando se mudou. A água só chegou à torneira dela há cinco anos, quando uma ligação clandestina foi feita. “Mesmo assim deixei o poço, porque a maior parte da rua não tem água. Fico com muita pena deles, principalmente das crianças. Enquanto esse poço não secar não tenho porque fechar”, diz. A doméstica Laura Silva, 37, é vizinha dela e a ajudou com o abastecimento. “Quando puxei a ligação pra minha casa, puxei para a dela também, para facilitar e não deixar ela usando só água de poço, ainda que a água da torneira seja mais amarela. A do poço é ótima para lavar roupa, deixa tudo branquinho e não mancha”, afirma.
Por morar sozinha, dona Neuza não tem como controlar efetivamente a manutenção do poço, mas faz o que pode. “Se vejo que o balde está muito sujo, lavo ou troco ele. Mas quando a equipe da saúde vem, eles sempre jogam uns produtos para limpar e até agora ninguém da rua reclamou dessa água”, relata.
A dona de casa Ana Costa Jardim, 70, não confia na água fornecida pelo Sistema de Abastecimento Autônomo de Água e Esgoto de Belém (Saaeb). Também moradora da rua Tiradentes, o genro foi quem cavou o poço e colocou uma bomba para puxar água para a caixa, que supre todas as necessidades da família. “Uso um pedaço de pano na torneira e em um dia com a água da Saaeb ele fica mais sujo do que em uma semana usando a água do poço”, compara. O uso da bomba representa um gasto extra na conta de energia elétrica, mas ela acredita que compensa por poder usar uma água mais limpa e sem “gosto de ferrugem”.
Entre os cuidados que ela toma, estão a tampa improvisada para não deixar cair lixo ou bichos, jogar água sanitária uma vez por mês e fazer os filhos limparem o poço anualmente. Assim como Neuza, ela não sabe precisar a profundidade do reservatório. “Quando os vizinhos das outras ruas pedem para encher os garrafões eu deixo, porque água não se nega para ninguém. Além do mais, ninguém nunca passou mal e a gente consome todo dia. Uso para cozinhar e beber, mesmo sem ferver ou filtrar”, admite. Poço amazonas ou poço escavado é o tipo existente nas casas de Ana e Neuza, também conhecida popularmente como “poço de boca” e geralmente com 2 a 20 metros de profundidade, segundo o professor Milton Antonio da Silva Matta.
DOENÇAS
Ele é um dos pesquisadores do Instituto de Geociências e coordenador do Mestrado Profissional em Recursos Hídricos da UFPA. Matta monitorou a incidência dos poços na RMB na última década e observou que o número dobrou neste período. “A prática se intensificou, pulando de cerca de 20 mil para 40 mil. A população não confia na água fornecida, que em muitas áreas é de baixa qualidade, quando tem. No entanto, o poço é uma fonte de doenças de veiculação hídrica e não é recomendado”, explica. Ele esclarece que o principal problema dos poços é a ausência das condições adequadas de higiene, por serem mal construídos na maioria das vezes. “Mesmo fervendo esta água, existem bactérias termotolerantes, ou seja resistentes ao calor. O uso de filtro também não é o suficiente”, alerta.
Ainda de acordo com ele, o potencial de contaminação bacteriológica dos poços é muito alto e doenças como febre tifoide e reações alérgicas podem ser contraídas. “O Ministério Público deveria se voltar para essa questão, assim como a Cosanpa (Companhia de Saneamento do Pará) precisa mudar o sistema de abastecimento atual, oferecer um serviço de qualidade para os habitantes”, completa.
Aproximadamente 30% da capital paraense é abastecida pela Cosanpa com água de poços, assegura a presidente da Companhia, Noêmia Jacob. “São poços profundos, com no mínimo 80 até 200 metros e a água passa por tratamento. Essa que é a diferença dos poços particulares e onde está o perigo, pois esse líquido normalmente tem alta concentração de ferro, além da contaminação também”, acrescenta. Ela argumenta ainda que muitas pessoas, mesmo que estejam na área de cobertura, optam pelo poço para tentar reduzir custos. Atualmente, pouco mais de 60% de Belém é coberta pela Cosanpa, com alguns setores atendidos por poços, funcionando como “sistemas isolados”.
“Seria ideal ter rios perenes e prover todo o abastecimento deles, mas em Belém você não consegue fazer isso. Em lugares como a avenida Augusto Montenegro por exemplo, onde a ocupação populacional tem crescido muito, funciona melhor criar um microssistema e fazer a captação com poços”, defende. A deficiência no fornecimento ainda é um dos principais problemas da população e Noêmia prevê investimentos de R$ 1,2 bilhão em todo o Estado, sendo R$ 300 milhões só em Belém, para os próximos anos. Segundo ela, a meta é ampliar a rede e alcançar 80% de cobertura, e depois a universalização. Em Icoaraci, há investimento previsto para a adutora da Augusto Montenegro e a Cosanpa aguarda as negociações com a prefeitura para assinar o contrato de concessão e assumir a Saaeb. “Somente depois serão realizados os levantamentos para identificar o que precisa ser feito no sistema do distrito para melhorar a qualidade e quantidade do abastecimento”, garante.
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