* Publicado no Guia da XVIII Feira Pan-Amazônica do Livro, encartado no jornal O LIBERAL em 30/05/2014
O escritor amazonense de origem libanesa será um dos principais homenageados da Pan-Amazônica deste ano. Para ele, o convite reforça o seu amor pela capital paraense.
Nascido em Manaus e com descendência libanesa, o escritor Milton Hatoum, de 61 anos, não esconde o carinho por Belém. Ele diz que o convite para ser o escritor homenageado da Feira Pan-Amazônica deste ano, juntamente com o título honorífico de “Cidadão do Pará” concedido no ano passado pela Assembleia Legislativa do Estado, reforçaram um “antigo caso de amor” com a capital paraense.
Mesmo contemplado quatro vezes com o Prêmio Jabuti, o amazonense conta que não acredita muito em “méritos”. Mas ele é considerado um dos grandes escritores do Brasil e sua obra inclui romances como “Relato de um Certo Oriente”, “Dois Irmãos”, “Cinzas do Norte”, “Órfãos do Eldorado” [onde deixa escapar seu amor por Belém], além dos livros de contos, crônicas e poesia. Com publicações traduzidas em 12 línguas e lançadas em 14 países, Hatoum fala sobre a conexão com a cultura árabe e de sua relação com a produção literária regional.
Além do senhor, que tem descendência libanesa, o Qatar também será homenageado nessa edição da Feira, numa abordagem da cultura árabe em geral. Por que se destacar a integração entre duas culturas tão ricas?
Nós somos mestiços, como todos os brasileiros. Homenagear a cultura árabe passa obrigatoriamente pela brasileira. Alguns traços dessa cultura já foram trazidos pelos colonizadores portugueses. Na nossa língua há uma herança árabe, por causa da presença daquele povo por sete séculos na Espanha e três séculos em Portugal. Temos estudos maravilhosos sobre essa influência.
Sua obra será tema de um seminário, onde serão abordadas as memórias acerca de Manaus e você ministrará uma palestra “Passagens para um Certo Oriente”. Como o seu trabalho faz essa ponte entre Ocidente e Oriente?
Durante o seminário vou falar das origens do romance [Relato de um Certo Oriente], de como ele surgiu, da relação entre a vida e a literatura, do que me inspirou e quais foram as dificuldades técnicas de construir essa narrativa. Foram quase seis anos de trabalho para terminar esse livrinho, que completa agora 25 anos. Vou dividir as minhas impressões acerca desse Oriente meio difuso, dessa língua árabe que me escapou, mas está na minha alma e memória como uma melodia, uma linguagem da infância. Ela existe como sons, como prosódia e essa carnalidade da língua, que é puramente o som, é muito familiar para mim. Embora eu não fale o árabe, eu o sinto. Isto é algo que se perdeu muito entre os imigrantes, já na segunda terceira geração. A minha família é um exemplo, pois o meu pai era libanês, mas a minha mãe era amazonense.
O que representa, para o senhor, ser o escritor homenageado da Feira e poder interagir com um público tão diversificado, composto em boa parte de jovens leitores? O que espera desse contato?
Sinto-me muito honrado e contente em ser homenageado, em especial, porque agora sou oficialmente também um paraense, pois ganhei o título de “Cidadão do Pará”. Tenho uma verdadeira paixão por Belém, já é um caso antigo. Dois dos grandes amigos da minha vida são de Belém, a Maria Lúcia Medeiros e o Benedito Nunes, com quem publiquei em parceria o livro “Crônica de Duas Cidades: Belém e Manaus”. Foram amigos queridíssimos, com eles aprendi muito, não só a aprendizagem intelectual. Benedito foi, inclusive, um dos primeiros críticos a falar de “Relato” e escreveu um ensaio belíssimo sobre “Dois Irmãos”, que está em sua obra “A Clave do Poético”. A Feira é um evento muito necessário no momento em que não só o Brasil, mas o mundo todo optou pela banalidade e pela trivialidade. Uma secretaria de Cultura que investe numa feira de livros de qualidade está apostando na formação de leitores e consequentemente no fortalecimento da cidadania e consciência crítica. Dar aos jovens a possibilidade de ler bons livros é um alcance incrível do evento. Discutir literatura com eles, com professores e leitores de modo geral será um imenso prazer e é uma coisa fundamental. Em Manaus, a feira começou a ser realizada há poucos anos. Do ponto de vista da cultura, Belém sempre foi muito viva e vibrante e, às vezes, não depende da economia do Estado, depende das mentes que coordenam uma política cultural.
O livro “Órfãos do Eldorado” explora Belém e está sendo adaptado para o cinema. As filmagens já terminaram? Há novos projetos de adaptação das suas obras?
Sim, a adaptação do livro já terminou e o filme deve ser lançado agora no segundo semestre. Tiveram várias cenas rodadas em Belém, inclusive a Dira Paes (atriz paraense) está no elenco. Espero que passe no circuito comercial de Belém e Manaus, seria tristíssimo se ele ficasse de fora das salas. Mas também há novos projetos. “Relato de um Certo Oriente” vai ser adaptado por Marcelo Gomes, diretor de “Cinema, Aspirina e Urubus”, mas ainda estão trabalhando no roteiro e deve demorar mais. Já o “Dois Irmãos” vai ser mesmo uma minissérie da Rede Globo, dirigido pelo Luis Fernando Carvalho [que comandou a microssérie “Capitu”, baseado no livro “Dom Casmurro”]. Parece que as filmagens ainda não iniciaram e deve ser lançado somente no próximo ano.
Como é a sua relação com a produção literária da região?
Gosto muito e observo sempre. A vida cultural em Belém é muito intensa, tenho uma ligação afetiva não só com a cidade, mas com as pessoas. Por exemplo, o fotógrafo Luiz Braga é o autor de muitas capas dos meus livros. A literatura paraense tem grandes poetas, como o Max Martins e João Jesus de Paes Loureiro. Antônio Moura e Marcílio Costa são poetas mais jovens que li recentemente, quando eles gentilmente me entregaram seus exemplares e gostei muito. Não podemos esquecer de Haroldo Maranhão e Vicente Cecim, que é uma espécie de mago da linguagem, um peregrino e transgressor. Todos são escritores que eu admiro. Da própria Maria Lúcia Medeiros, gosto muito dos contos. Na região há toda uma formação de críticos que herdaram a obra do Benedito Nunes, para o estudante de literatura e filosofia do Pará, já é uma referência muito consistente. Então, acredito que se eu fosse aconselhar os jovens, diria que lessem “O Tempo na Narrativa”, de Benedito, que é um livro maravilhoso sobre o tempo nos grandes romances. Usava bastante quando era professor e os alunos gostavam muito.