*Terceira colocada na categoria Impresso do Prêmio de Jornalismo em Turismo 2016
As canoas saem da Praia do Pesqueiro, em Soure, em direção a um pontão de areia e, poucos minutos depois, chegam à Vila do Céu. Logo na entrada, uma placa indica o restaurante “Brisa do Céu”, construído em um esforço conjunto pela comunidade de pescadores. Os moradores perceberam que os viajantes que saíam da rota oficial do turismo na Ilha e chegavam até o local, não encontravam opções de alimentação e hospedagem, tendo que voltar para o Pesqueiro. Depois que o estabelecimento, erguido com uma estrutura de taboca e palha, foi inaugurado, a renda arrecadada tem sido usada para promover melhorias na vila e o plano é abrir uma pequena pousada ao lado. Os visitantes que costumam explorar a vila, com suas coloridas casas de madeira e uma rotina muito diferente das grandes cidades, são aqueles interessados em turismo de base comunitária. A preservação ambiental é um dos fatores que chama a atenção desse público, mas o que realmente encanta é o contato com o acolhedor povo amazônico. “Esse modelo de turismo traz a parte humana da viagem, para que as pessoas conheçam a dinâmica e a diversidade da região através de seus habitantes. É importante que o brasileiro explore a Amazônia para aprender a valorizá-la”, afirma Maria Teresa Junqueira, gerente da operadora de viagens Turismo Consciente.
Natural de São Paulo, Maria Teresa começou a desbravar a Amazônia há 15 anos com o projeto Vaga Lume, que implanta bibliotecas comunitárias em localidades rurais e ribeirinhas. A partir da interação com as comunidades do Arquipélago, ela participou da montagem do roteiro VEM – Viagem Encontrando Marajó, em 2007, em parceria com a Associação de Mulheres da Vila do Pesqueiro. A experiência inclui atividades como coleta de turu, pesca artesanal, passeio no mangue e pernoite nas comunidades.
O projeto recebeu financiamento do governo federal, possibilitando a capacitação de muitos moradores. Eles se dividiram entre os que participaram de oficinas gastronômicas, para resgatar a culinária tradicional, de guias turísticos e anfitriões, que formou os responsáveis por coordenarem os grupos e organizarem os passeios, e de hospedagem, para aqueles que escolheram abrir as casas para os turistas. Embora o projeto esteja oficialmente parado há pelo menos cinco anos, por dificuldades de articulação junto à Associação, os agentes do turismo comunitário continuam trabalhando na área, através de parcerias com hotéis e agências de viagem.
É o caso da Lucileide Borges, 41, que tem várias funções na comunidade do Pesqueiro, entre elas a de professora e a de guia do passeio de extração do turu. A tarefa é desempenhada ao lado do esposo, e sob os olhares curiosos e desconfiados dos visitantes, eles pegam os moluscos no mangue, fazem a limpeza e a degustação. “A procura por esses roteiros tem crescido e o diferencial é que é um modelo que promove a preservação ambiental, porque os turistas conhecem melhor a natureza local, e são criados laços entre quem vem de fora e a gente. Não é um trabalho impessoal”, diz.
Ainda segundo ela, a renda gerada por essa atividade complementa o orçamento de muitas famílias. “Esse turismo envolve os parceiros das comunidades de pescadores, beneficiando gente que, muitas vezes, só tem o bolsa família de renda fixa. A consciência com o meio ambiente também aumenta entre os moradores, que passaram a se preocupar mais com destino adequado do lixo e até com a poluição sonora”, completa. Maria Teresa ressalta que o turismo de base comunitária não pode transformar a atividade econômica de uma localidade, funcionando melhor como uma renda extra. “Há uma linha tênue: até onde dá para a gente ir para que as pessoas não deixem de desenvolverem as ocupações tradicionais? Se abandonam isso e o fluxo de turistas cessa ou diminui, a comunidade sofre um declínio”, pontua.
Percorrendo as praias, vilas, fazendas e rios de Soure, Ana Cristina Penante, 38, fala com muita segurança sobre as características da gente, dos animais e das plantas marajoaras. Ela é uma atuante promotora do turismo regional no Marajó, com 15 anos de experiência. Para ela, o impacto na vida da comunidade é visível, mesmo com poucos investimentos no setor turístico. “Quando começamos a hospedar turistas na vila, só podia recebê-los quem tinha banheiro dentro de casa, com fossa séptica. A partir daí, mesmo quem não precisava seguir essa exigência, fez questão de adaptar o banheiro e hoje praticamente todas as casas da vila estão adequadas”, conta.
Ela comenta que o turismo, especialmente o que busca o envolvimento com as populações tradicionais da Ilha, esbarra em dificuldades de comunicação, transporte e incentivo. “Nas vilas do Pesqueiro, Céu e Caju-una, por exemplo, só pega o celular rural e se tiver antena boa. Para chegar a alguns desses locais, tem que ter autorização para passar por dentro de fazendas e o transporte aqui na ilha tem um custo muito alto. O poder público pouco divulga e informa os turistas sobre iniciativas de base comunitária. O Marajó tem um enorme potencial turístico, que pode beneficiar muito os habitantes, mas falta as nossas autoridades perceberem isso para a gente conseguir crescer mais”, acrescenta.
Outro grande efeito de trabalhar com os moradores locais, de acordo com Ana Cristina, é ver o fortalecimento da articulação e do empoderamento. Maria Teresa destaca que o “Brisa do Céu” é um ótimo exemplo de “inteligência social”. De trás do balcão, sempre sorridente e sentindo prazer em receber bem os clientes, a gerente Joelma Sousa, 29, fez questão de registrar no celular imagens do estabelecimento lotado de visitantes que tinham chegado de São Paulo. Os turistas almoçaram peixe frito com açaí, ao som de bregas marcantes e de frente para a praia, com um vento incessante que faz jus ao nome do restaurante.
“A nossa ideia é ampliar e abrir uma pousada, construindo alguns quartinhos. A comunidade fica afastada e é basicamente familiar, mas nos reunimos e decidimos oferecer opções para os visitantes comerem e se hospedarem”, reforça. O restaurante foi construído há menos de um ano, erguido e equipado a partir da coleta e da mão de obra da comunidade. “O lucro é usado em melhorias para a comunidade, como a revitalização de áreas de uso comum, na sede da associação de moradores, na igreja, no colégio. Esse sistema tem funcionado muito bem e só tem benefícios a trazer”, avalia.
Além da interação com a natureza, o roteiro montado por Maria Teresa costuma incluir a visita ao ateliê do escultor ceramista Ronaldo Guedes, 40, que mostra um pouco da arte marajoara. No bairro do Pacoval, onde fica o espaço, ele também promove ações ambientais e culturais paras as crianças. “É um trabalho voltado para a cultura, mas também de consciência política, para que as pessoas daqui se apropriem do seu território e entendam o quanto esse aspecto histórico da arte representa para o nosso desenvolvimento”, defende.
Para o grupo de cerca de 20 turistas de São Paulo, que viajaram com os filhos pela Turismo Consciente, a oficina de cerâmica foi um dos momentos mais especiais, pois eles puderam produzir as próprias peças, que depois foram ao forno para ficarem prontas. “O turismo de base comunitária é um elemento importante para a gente porque há uma troca de experiências e contribui para a nossa renda. Ensinar e aprender com a cultura dos outros sempre é enriquecedor, ainda mais pela cerâmica marajoara ter relação direta com a pré-história da Amazônia”, frisa.