*Publicado na página Responsabilidade Social, no jornal O LIBERAL de 19/11/2015
BRENDA PANTOJA
Da Redação
Democracia, cidadania e a
estrutura do Estado brasileiro.
Esses três tópicos
vêm sendo amplamente discutidos
em um canteiro de obras
no bairro do Icuí-Guajará, em
Ananindeua. Nesse ambiente
de trabalho, o debate vai além
das rodas de conversas informais
sobre o cenário político
ou a crise econômica do País,
pois é realizado durante o
Curso de Iniciação Política, gerando
um entendimento mais
amplo e formando cidadãos
multiplicadores. A iniciativa
é da empresa Síntese Moradia,
que selecionou 58 funcionários, fornecedores e moradores
da comunidade para assistirem
às aulas.
A turma participará do segundo
encontro amanhã e encerrará
o ciclo na próxima sexta-feira.
A atividade é realizada
sempre de 8h às 12h30, dentro
do expediente. A diretora executiva
Lecy Garcia garante
que é a primeira vez que um
curso nesse formato é ministrado
para colaboradores da
indústria da construção civil
em Belém. O objetivo é oferecer
conteúdo de introdução às
questões políticas, de forma
suprapartidária, e fortalecer a
formação cidadã do corpo de
trabalhadores, composto em
quase 70% de habitantes das
comunidades próximas.
O resultado, acreditam os
organizadores, será visto na
prática, a partir de uma mudança
de postura e de articulação nos moradores do bairro.
“Pesquisas mostram que três
meses depois das eleições,
60% das pessoas não lembram
mais em quem votaram
para cargos como os de vereadores,
deputados estaduais e
federais. É muito importante
criar no eleitor uma provocação, instigá-lo a ponto de que
ele não esqueça quem elegeu
e se lembre de cobrar esse político”,
afirma Rodrigo Garcia,
diretor de Gestão e Estratégia
da empresa.
A ideia surgiu no último
período eleitoral, quando uma
obra estava sendo finalizada
no município de Capanema, e
vários funcionários pediram
aos seus encarregados que
indicassem em quem deveriam
votar. “Isso não é bom,
pois abre brecha para manipulação
e transfere a responsabilidade
do cidadão. Nossa
meta com esta ação é que eles
construam autonomia de escolha,
de consciência crítica.
O voto é inalienável, é seu, a
responsabilidade é de todos
nós para transformar o País”,
reforça.
O encarregado de obras
Ivaldo Tadeu Caldas, 51, é um
dos participantes e já parou
para reavaliar sobre muitos
pontos na primeira aula. Para
ele, saber como funciona o
sistema é fundamental para
cobrar mudanças, tais como
reduzir “as regalias dos políticos”.
Apesar de otimista e confiante
no desenvolvimento do
Brasil, ele se diz realista. “Vai
ser um processo lento. Para
melhorar a situação, a gente
tem que cumprir o nosso papel
também, tem que ter entendimento
sobre as leis do país”,
pontua. O curso, nesse sentido,
é classificado por ele como
“necessário e proveitoso”.
Ivaldo observou que o primeiro
momento de discussão
deixou muitos “surpresos”.
“Ao poucos, vai abrindo a
mente para uma visão diferente,
uma interpretação que nem sempre estamos acostumados.
Nos ajuda a perceber a
responsabilidade em relação
aos que colocamos no poder
para representar o povo”, pondera.
A preocupação com a
conscientização do filho está
entre as reflexões que ele leva
do curso. Em vez de mandar
o filho votar em determinado
candidato, vai conversar com
o rapaz e incentivá-lo a decidir
sozinho.
Ele ressalta que as aulas
sobre cidadania vão chamar
a atenção dos operários sobre
a importância dos deveres e
também dos direitos. Ivaldo
aponta um problema comum
na construção civil, que é o
trabalho informal. “Para se
aposentar, o trabalhador da
área tem que ter 35 anos de
trabalho comprovados, mas
muitos começam irregularmente,
sem assinar carteira, e
não percebem o prejuízo que
isso pode causar”, diz. O reflexo
também poderá ser visto na
mobilização da comunidade,
segundo ele, que se trata de
uma área onde as políticas públicas demoram muito a chegar.
“Quando a obra começou,
tivemos que mandar furar um
poço artesiano porque ainda não tinha abastecimento. Se
houver organização e planejamento,
e uma população
consciente dos seus direitos,
eles conseguem melhorias”,
completa.
A proposta das aulas não
foi novidade nenhuma para
o cientista político Humberto
Dantas, formado pela Universidade
de São Paulo (USP) e com
mais de 300 turmas formadas
em cursos livres de formação
política. Contudo, esta foi a
primeira vez que ele realizou
o trabalho em um canteiro de
obras. Segundo ele, as palestras
são feitas, predominantemente,
para um público de
jovens estudantes de escolas
públicas na periferia de São
Paulo. De acordo com Dantas,
há forte demanda também de
fábricas, empresas, gerentes
de banco e organizações públicas.
“É um trabalho necessário
para os mais de 155 milhões
de eleitores do país. Quando
se trata de trazer para este ambiente,
estamos lidando com
agentes responsáveis por uma
política pública, de habitação.
Eles constroem moradias e são
agentes dessa política”, destaca.
Dantas amplia, frisando que o debate precisa ser feito
por todos os cidadãos, para
que todos tenham consciência
de como são feitas as leis.
Ele explica que o curso segue
um formato simples, com palestras
e desafios propostos
aos participantes. As atividades
contam com exibição de
documentários, divisão em
grupos e até ações práticas na
comunidade.
A culminância do curso
será com uma ação dos funcionários
e colaboradores, que
deverão observar o que está
errado no entorno da obra e
pensar em formas de melhorar
a realidade local. Eles poderão
entrar em contato com
uma associação do bairro e
promover um diálogo para
que os grupos saiam a campo,
orientados por representantes
para uma percepção dos principais
problemas. Se for o caso,
deve ser feito um contato com
a prefeitura para fazer intervenções
mínimas em áreas de
educação, saúde ou centros de
convivência.
Após as visitas, cada equipe
deve tentar convencer os
demais sobre uma intervenção
que todos possam realizar em
um desses locais. “É importante
que apenas uma ideia
seja contemplada, justamente
para mostrar que na vida pública existe a necessidade de
fazermos escolhas e investirmos
sobre a lógica do convencimento
– isso é fazer política”,
define. O projeto sugere que a
ação definida pelos integrantes
no último encontro seja
transformada em algo padrão
da empresa.
“Cada obra entregue pode
terminar com um trabalho
de conscientização em que os
colaboradores envolvidos, em
contato com a comunidade,
realizem algo sob um dos três
métodos acima, marcando a
capacidade de pensarmos coletivamente”,
propõe. Para Dantas,
o objetivo será alcançado
se o participante sair do curso
desejando uma sociedade democrática
e compreendendo
que ele é responsável por essa
sociedade.
Empresa quer despertar no trabalhador a capacidade de empoderamento
Lecy Garcia enfatiza que a
ação faz parte de um programa
muito maior, uma vez que
a valorização do ser humano
é um valor muito forte para
a empresa. “Se a Síntese tem
como propósito ter equipes
de excelência, a base de tudo
é o desenvolvimento da consciência
crítica, da capacidade
de empoderamento desses
indivíduos. Eles se tornam
multiplicadores dessa postura
em casa, na vizinhança e na
própria empresa”, assegura.
Além dos 175 operários envolvidos
na construção do empreendimento
“Novo Cristo I”,
onde está sendo ministrado o
curso, a obra teve um grande
impacto socioeconômico nos
moradores do loteamento Warislândia.
A fim de também contribuir
para o desenvolvimento
do local onde está inserida, a
empresa optou por contratar
moradores da área, gerando
emprego e renda. Ela cita como
exemplo o microempresário Alan Souza, de 29 anos. Há
um ano, ele fornece refeições
para o canteiro de obras, uma
atividade que aumentou significativamente
a renda mensal
da família. Ele conta que não
tinha intenção de trabalhar
na área, mas surgiu a oportunidade
quando começou a
garantir a alimentação do primeiro
funcionário, que operava
sozinho uma máquina para
limpar o terreno.
Atualmente, ele atende 130 operários, que consomem café
da manhã, lanche, almoço
e jantar, se for necessário. São
mais de 300 unidades vendidas
por dia e o crescimento
exigiu capacitação. “Tivemos
que nos formalizar para ter
CNPJ e emitir nota fiscal, tudo
direitinho. Por meio da Síntese,
conseguimos parceria com
a REDES/FIEPA, que nos deu
assessoria nesse processo. Já
contratamos sete pessoas daqui
para nos ajudar com a demanda”,
conta. Alan também é
o vice-líder comunitário e está
participando da turma de iniciação
política. Ele considera
a ação, por si só, inovadora e
uma atitude “surpreendente”
por parte dos empresários.
“Compartilhar esse conhecimento
é um diferencial para
qualquer empresa. Os instrutores
estão sendo muito atenciosos
e tirando dúvidas, coordenando
as discussões. Isso
desperta ou faz a gente recuperar
o interesse pela política
porque muitos estão desacreditados
com o poder público,
não sabem a quem recorrer
para fazer valer os seus direitos”,
observa. Como integrante
da liderança comunitária, ele
admite que o curso está dando
uma nova perspectiva sobre a
atuação social. No loteamento,
a mudança está chegando aos
poucos. Segundo Alan, antes
não havia nenhum ambiente
de lazer e agora eles têm quadra
esportiva e pracinha. Os
serviços de drenagem e construção
do meio-fio também começaram
e a expectativa é pela
conclusão do asfaltamento.
Ele compreende que, com
uma maior noção política, reproduzida
entre os moradores,
é possível se articular mais e
trabalhar melhor o senso de
coletividade. “Temos um problema
sério com o acúmulo de
lixo nas ruas e fortalecer a cidadania
é uma forma de conscientizar
sobre o cuidado com
o bem coletivo, para cortarmos
essa prática, e de cobrar uma
coleta de lixo mais eficiente”,
exemplifica.
Para o doutor em Ciência
Política pela Universidade Federal
do Pará, professor Edir
Veiga Siqueira, investir em
iniciativas de responsabilidade
social é o caminho para
uma sociedade mais engajada
e com formação política
mais consistente. “Estes dois
elementos [responsabilidade
social e consciência política]
são essenciais para fortalecer
a sociabilidade. A pessoa que é
voluntária e realiza atividades
altruísticas vai desenvolver
algo fundamental para o indivíduo,
que é construir uma
visão mais global e humana”,
analisa. Na visão dele, está se
desenhando entre a juventude,
ainda em um processo
embrionário, um novo ativismo
político.
Este modelo representa
uma consciência macro que
trabalha com parcerias entre o
estado, o setor privado e sociedade
civil. “Não dá para ficar
esperando pelo poder público.
Essa articulação é de suma
importância. De fato, acredito
que deveriam existir campanhas
para que todas as ações
de responsabilidade social, seja
qual for o eixo, incluíssem
noções teóricas sobre cidadania,
acesso ao poder, consciência
ambiental e outros tópicos
similares”, argumenta.